O tão esperado acoplamento do bóson de Higgs com o quark top foi, finalmente, obtido no Large Hadron Collider (LHC), o grande colisor de hádrons, situado na fronteira franco-suíça.
© CERN/D. Dominguez (ilustração do campo Brout-Englert-Higgs)
O evento foi detectado de forma independente pelas duas principais equipes internacionais que atuam no LHC: a CMS e a Atlas.
O resultado é uma robusta confirmação da acurácia do chamado Modelo Padrão da Física de Partículas, construído coletivamente desde o início dos anos 1960.
“Como o bóson de Higgs participa do processo que produz as massas de todas as partículas, esperava-se que ele interagisse com as partículas proporcionalmente às suas massas. Isto é, que quanto mais pesada a partícula, maior fosse sua interação com o bóson. Trata-se de uma característica muito específica, que, segundo o Modelo Padrão, apenas o bóson de Higgs possui. Então, investigar se isso realmente ocorre experimentalmente é uma maneira muito forte de corroborar o modelo”, disse Sérgio Novaes, professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e integrante da colaboração internacional CMS.
“Com as partículas leves, o acoplamento é pequeno e difícil de medir. Havia, portanto, uma grande expectativa em relação ao acoplamento do bóson de Higgs com o quark top, que é uma partícula muito pesada, mais pesada inclusive do que o próprio Higgs, com massa superior a 172 GeV/c2. Finalmente, conseguimos detectar e medir essa interação. E chegamos à conclusão de que, efetivamente, ocorre aquilo que havia sido predito pelo Modelo Padrão. O Higgs acopla-se proporcionalmente à massa do top. Foi uma grande confirmação do modelo”, disse Novaes.
A interação do bóson de Higgs com o quark top só foi possível devido ao aumento de energia do LHC. No evento em questão, a colisão de dois prótons gera um par quark-antiquark top (cada componente com mais de 172 GeV/c2) e um bóson de Higgs (com cerca de 125 GeV/c2). Isso corresponde quase à massa de 500 prótons. Então, no patamar atual de energia do colisor, de 13 TeV (13 trilhões de elétrons-volt), o choque de dois prótons produz massa equivalente a 500 prótons, e o restante da energia inicial manifesta-se sob a forma da energia das partículas produzidas. Aqui, vale lembrar que a energia se converte em massa, segundo a famosa equação de Einstein, E = m.c2, na qual E é a energia; m, a massa; e c, a velocidade da luz no vácuo.
Além disso, quanto maior a energia do colisor, maior a definição entre dois pontos observados. Com a energia atual do LHC, é possível diferenciar pontos situados a apenas 10-18 m. Para efeito de comparação, essa distância é um bilhão de vezes menor do que aquela na qual opera a nanotecnologia [10-9 m].
O bóson de Higgs – assim chamado em homenagem ao seu propositor, o físico britânico Peter Higgs, nascido em 1929 e Prêmio Nobel de Física de 2013 – foi incorporado ao Modelo Padrão na década de 1960, para resolver um problema teórico abstrato: que o modelo contivesse um ingrediente capaz de conferir massa às partículas que precisavam ter massa e, ao mesmo tempo, que permanecesse “renormalizável”, isto é, capaz de fazer predições.
Isso foi um dilema até que o físico norte-americano Steven Weinberg – ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1979, junto com o paquistanês Abdus Salam e o norte-americano Sheldon Glashow – tivesse a ideia de agregar ao modelo o chamado “mecanismo de Higgs”.
“Não havia nenhuma evidência experimental da existência do bóson de Higgs. Sua proposição foi mais uma aventura teórica do que qualquer hipótese experimentalmente verificável. Tanto é que foram necessários 45 anos até a partícula ser finalmente detectada e anunciada, em 4 de julho de 2012”, disse Novaes.
A dificuldade da obtenção experimental é fácil de entender. Com massa de aproximadamente 125 GeV/c2, mais de 133 vezes a massa do próton, o bóson de Higgs é, depois do quark top, a segunda partícula mais massiva do Modelo Padrão. Sua produção, por uma ínfima fração de segundo, só é possível em contextos de altíssima energia, como aqueles que teriam existido logo depois do Big Bang ou os agora alcançados no LHC.
“Não houve, durante esses 45 anos, nenhuma hipótese alternativa que, ao mesmo tempo, conferisse massa às partículas e explicasse a interação entre elas. Trabalhei com isso desde o meu mestrado. Para mim, é um prazer enorme ter participado da detecção do bóson de Higgs em 2012. E ver, agora, mais uma confirmação dessa proposta teórica”, disse Novaes, atualmente no LHC, em Genebra, Suíça.
A afirmação de que o bóson de Higgs confere massa às partículas dá margem, às vezes, a uma interpretação equivocada. O motivo é que se imagina uma partícula entregando massa a outra pontualmente, mas não é disso que se trata.
A melhor ferramenta disponível para descrever esse nível da natureza é a teoria de campos. Nos marcos da mecânica quântica, as partículas não são corpúsculos diminutos, tais como concebidas na Física Clássica. Partículas são excitações do campo. Toda partícula é, na realidade, o quantum de um determinado campo. O fóton é o quantum do campo eletromagnético. O elétron é o quantum do campo do elétron. O bóson de Higgs é o quantum do campo de Higgs. E assim por diante. Segundo o Modelo Padrão, é o campo de Higgs que confere massa às partículas. Ao se manifestarem no espaço, as partículas interagem com ele. E, quanto maior a interação, maior a massa.
Assim, por exemplo, embora sejam idênticos quanto à carga (2/3) e ao spin (1/2), os quarks up e top apresentam enorme diferença de massa. A massa do top é quase 80 mil vezes maior. E isso é proporcional ao seu acoplamento ao campo de Higgs.
“O fato de a constante de acoplamento do bóson de Higgs ser proporcional à massa das partículas com as quais ele se acopla é uma predição universal do Modelo Padrão. Essa predição já havia sido corroborada no caso de partículas mais leves. Agora, o acoplamento com o quark top vem reforçar, ainda mais, a efetividade do modelo na descrição das partículas elementares e de suas interações”, disse Novaes.
A detecção do acoplamento do bóson de Higgs com o quark top decorreu da superação de enormes dificuldades experimentais. Uma dificuldade é que as três partículas resultantes da colisão (o quark top, o antiquark top e o bóson de Higgs) decaem, muito rapidamente, em outros objetos. O quark top decai no bóson W e no quark bottom. O W, por sua vez, decai em outras partículas.
Ora, o quark bottom é um objeto produzido copiosamente em colisões de prótons. Então, um grande desafio é distinguir o quark bottom originado pelo quark top de um pano de fundo extremamente abundante em quarks bottom. Além disso, o bóson de Higgs também decai em vários objetos. Tudo isso em um contexto no qual há cerca de 40 interações ocorrendo ao mesmo tempo.
“O estado final detectado é muito complexo e exige uma engenharia de big data fantástica, para que o sinal de interesse possa ser extraído desse background superabundante. É aquela história de achar umas poucas agulhas no palheiro”, disse Novaes.
E o “palheiro” é realmente colossal. Pois, a cada 25 bilionésimos de segundo, dois feixes, cada qual com 100 bilhões de prótons, colidem durante a atividade do LHC, gerando a maior quantidade de dados já produzida na face da Terra.
A descoberta foi descrita no periódico Physical Review Letters.
Fonte: CERN & Agência FAPESP
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