segunda-feira, 30 de julho de 2018

A ligação do bóson de Higgs com o quark top

O tão esperado acoplamento do bóson de Higgs com o quark top foi, finalmente, obtido no Large Hadron Collider (LHC), o grande colisor de hádrons, situado na fronteira franco-suíça.

ilustração do campo Brout-Englert-Higgs

© CERN/D. Dominguez (ilustração do campo Brout-Englert-Higgs)

O evento foi detectado de forma independente pelas duas principais equipes internacionais que atuam no LHC: a CMS e a Atlas.

O resultado é uma robusta confirmação da acurácia do chamado Modelo Padrão da Física de Partículas, construído coletivamente desde o início dos anos 1960.

“Como o bóson de Higgs participa do processo que produz as massas de todas as partículas, esperava-se que ele interagisse com as partículas proporcionalmente às suas massas. Isto é, que quanto mais pesada a partícula, maior fosse sua interação com o bóson. Trata-se de uma característica muito específica, que, segundo o Modelo Padrão, apenas o bóson de Higgs possui. Então, investigar se isso realmente ocorre experimentalmente é uma maneira muito forte de corroborar o modelo”, disse Sérgio Novaes, professor titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e integrante da colaboração internacional CMS.

“Com as partículas leves, o acoplamento é pequeno e difícil de medir. Havia, portanto, uma grande expectativa em relação ao acoplamento do bóson de Higgs com o quark top, que é uma partícula muito pesada, mais pesada inclusive do que o próprio Higgs, com massa superior a 172 GeV/c2. Finalmente, conseguimos detectar e medir essa interação. E chegamos à conclusão de que, efetivamente, ocorre aquilo que havia sido predito pelo Modelo Padrão. O Higgs acopla-se proporcionalmente à massa do top. Foi uma grande confirmação do modelo”, disse Novaes.

A interação do bóson de Higgs com o quark top só foi possível devido ao aumento de energia do LHC. No evento em questão, a colisão de dois prótons gera um par quark-antiquark top (cada componente com mais de 172 GeV/c2) e um bóson de Higgs (com cerca de 125 GeV/c2). Isso corresponde quase à massa de 500 prótons. Então, no patamar atual de energia do colisor, de 13 TeV (13 trilhões de elétrons-volt), o choque de dois prótons produz massa equivalente a 500 prótons, e o restante da energia inicial manifesta-se sob a forma da energia das partículas produzidas. Aqui, vale lembrar que a energia se converte em massa, segundo a famosa equação de Einstein, E = m.c2, na qual E é a energia; m, a massa; e c, a velocidade da luz no vácuo.

Além disso, quanto maior a energia do colisor, maior a definição entre dois pontos observados. Com a energia atual do LHC, é possível diferenciar pontos situados a apenas 10-18 m. Para efeito de comparação, essa distância é um bilhão de vezes menor do que aquela na qual opera a nanotecnologia [10-9 m].

O bóson de Higgs – assim chamado em homenagem ao seu propositor, o físico britânico Peter Higgs, nascido em 1929 e Prêmio Nobel de Física de 2013 – foi incorporado ao Modelo Padrão na década de 1960, para resolver um problema teórico abstrato: que o modelo contivesse um ingrediente capaz de conferir massa às partículas que precisavam ter massa e, ao mesmo tempo, que permanecesse “renormalizável”, isto é, capaz de fazer predições.

Isso foi um dilema até que o físico norte-americano Steven Weinberg – ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1979, junto com o paquistanês Abdus Salam e o norte-americano Sheldon Glashow – tivesse a ideia de agregar ao modelo o chamado “mecanismo de Higgs”.

“Não havia nenhuma evidência experimental da existência do bóson de Higgs. Sua proposição foi mais uma aventura teórica do que qualquer hipótese experimentalmente verificável. Tanto é que foram necessários 45 anos até a partícula ser finalmente detectada e anunciada, em 4 de julho de 2012”, disse Novaes.

A dificuldade da obtenção experimental é fácil de entender. Com massa de aproximadamente 125 GeV/c2, mais de 133 vezes a massa do próton, o bóson de Higgs é, depois do quark top, a segunda partícula mais massiva do Modelo Padrão. Sua produção, por uma ínfima fração de segundo, só é possível em contextos de altíssima energia, como aqueles que teriam existido logo depois do Big Bang ou os agora alcançados no LHC.

“Não houve, durante esses 45 anos, nenhuma hipótese alternativa que, ao mesmo tempo, conferisse massa às partículas e explicasse a interação entre elas. Trabalhei com isso desde o meu mestrado. Para mim, é um prazer enorme ter participado da detecção do bóson de Higgs em 2012. E ver, agora, mais uma confirmação dessa proposta teórica”, disse Novaes, atualmente no LHC, em Genebra, Suíça.

A afirmação de que o bóson de Higgs confere massa às partículas dá margem, às vezes, a uma interpretação equivocada. O motivo é que se imagina uma partícula entregando massa a outra pontualmente, mas não é disso que se trata.

A melhor ferramenta disponível para descrever esse nível da natureza é a teoria de campos. Nos marcos da mecânica quântica, as partículas não são corpúsculos diminutos, tais como concebidas na Física Clássica. Partículas são excitações do campo. Toda partícula é, na realidade, o quantum de um determinado campo. O fóton é o quantum do campo eletromagnético. O elétron é o quantum do campo do elétron. O bóson de Higgs é o quantum do campo de Higgs. E assim por diante. Segundo o Modelo Padrão, é o campo de Higgs que confere massa às partículas. Ao se manifestarem no espaço, as partículas interagem com ele. E, quanto maior a interação, maior a massa.

Assim, por exemplo, embora sejam idênticos quanto à carga (2/3) e ao spin (1/2), os quarks up e top apresentam enorme diferença de massa. A massa do top é quase 80 mil vezes maior. E isso é proporcional ao seu acoplamento ao campo de Higgs.

“O fato de a constante de acoplamento do bóson de Higgs ser proporcional à massa das partículas com as quais ele se acopla é uma predição universal do Modelo Padrão. Essa predição já havia sido corroborada no caso de partículas mais leves. Agora, o acoplamento com o quark top vem reforçar, ainda mais, a efetividade do modelo na descrição das partículas elementares e de suas interações”, disse Novaes.

A detecção do acoplamento do bóson de Higgs com o quark top decorreu da superação de enormes dificuldades experimentais. Uma dificuldade é que as três partículas resultantes da colisão (o quark top, o antiquark top e o bóson de Higgs) decaem, muito rapidamente, em outros objetos. O quark top decai no bóson W e no quark bottom. O W, por sua vez, decai em outras partículas.

Ora, o quark bottom é um objeto produzido copiosamente em colisões de prótons. Então, um grande desafio é distinguir o quark bottom originado pelo quark top de um pano de fundo extremamente abundante em quarks bottom. Além disso, o bóson de Higgs também decai em vários objetos. Tudo isso em um contexto no qual há cerca de 40 interações ocorrendo ao mesmo tempo.

“O estado final detectado é muito complexo e exige uma engenharia de big data fantástica, para que o sinal de interesse possa ser extraído desse background superabundante. É aquela história de achar umas poucas agulhas no palheiro”, disse Novaes.

E o “palheiro” é realmente colossal. Pois, a cada 25 bilionésimos de segundo, dois feixes, cada qual com 100 bilhões de prótons, colidem durante a atividade do LHC, gerando a maior quantidade de dados já produzida na face da Terra.

A descoberta foi descrita no periódico Physical Review Letters.

Fonte: CERN & Agência FAPESP

terça-feira, 17 de julho de 2018

Uma fonte de raios cósmicos fora da Via Láctea

Parece ter chegado ao fim o mistério da origem dos raios cósmicos de altíssima energia, as partículas mais energéticas do Universo, que chegam à Terra vindos de fora de nossa galáxia, a Via Láctea.

ilustração de um blazar emitindo neutrinos

© DESY (ilustração de um blazar emitindo neutrinos)

Uma equipe internacional de cientistas encontrou a primeira evidência de uma fonte de neutrinos de alta energia: uma galáxia ativa, ou blazar.

É a primeira vez que se identifica com tanta precisão a possível origem destas partículas, que, como se confirmou recentemente, são geradas fora da Via Láctea. A observação foi feita no dia 22 de setembro de 2017 no Observatório de Neutrinos IceCube, uma rede de 5.160 detectores instalados sob um bilhão de toneladas de gelo, construída próxima ao polo Sul, na Antártida.

As informações obtidas até agora corroboram a hipótese de que os buracos negros funcionariam como potentes aceleradores cósmicos de partículas, que atingiriam energias de milhões a bilhões de vezes superiores às produzidas nos maiores equipamentos já construídos pela ciência.

Descobertos em 1912 pelo físico austríaco Victor Hess, os raios cósmicos são partículas eletricamente carregadas vindas do espaço com velocidades próximas à da luz. Apesar de serem algumas das partículas mais abundantes no Universo, 100 trilhões passam através dos nossos corpos a cada segundo, estas partículas subatõmicas, eletricamente neutras, são notoriamente difíceis de serem detectadas porque raramente interagem com a matéria.

Enquanto os neutrinos primordiais foram criados durante o Big Bang, muitas destas partículas ilusórias são rotineiramente produzidas em reações nucleares através do cosmos. A maioria dos neutrinos que chegam à Terra derivam do Sol, mas acredita-se que aqueles que nos atingem com as energias mais altas provêm das mesmas fontes que os raios cósmicos, partículas altamente energéticas originárias de fontes exóticas fora do Sistema Solar.

Os raios cósmicos de mais baixa energia são criados e acelerados em explosões estelares na Via Láctea. Já os mais energéticos, com energias superiores a 1 EeV (1 exaelétrons-volts, ou 1018 elétrons-volts), devem ser prótons ou núcleos atômicos vindos de lugares muito distantes, fora de nossa galáxia. O principal desafio de determinar sua origem é que, por serem partículas eletricamente carregadas, não viajam em linha reta: sua trajetória é desviada ao atravessarem campos magnéticos dentro e fora das galáxias.

Uma maneira de contornar este problema é observar neutrinos de alta energia. Os neutrinos têm uma massa ínfima, carga elétrica nula e, portanto, quase não interagem com a matéria. Estas características permitem que viajem pelo espaço em linha reta e a velocidades próximas à da luz, atravessando quase tudo o que encontram pelo caminho sem serem perturbados, razão por que são chamados de partículas fantasmas.

Os astrofísicos estimam que alguns dos neutrinos de alta energia observados na Terra também venham de fora da galáxia e sejam produzidos pelos mesmos fenômenos que geram os raios cósmicos. Assim, traçar a origem destes neutrinos extragalácticos levaria também à origem dos raios cósmicos ultraenergéticos.

Em setembro de 2017, os detectores do IceCube registraram um sinal indicando a passagem de um único neutrino com energia de 290 TeV (teraelétrons-volts), 40 vezes a dos prótons acelerados no Large Hadron Collider (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, instalado na fronteira da Suíça com a França. Ao refazer o percurso do neutrino nos detectores do IceCube, os pesquisadores verificaram que sua origem seria um ponto do céu na constelação de Órion.

O telescópio espacial de raios gama Fermi da NASA e os telescópios MAGIC (Major Atmospheric Gamma Imaging Cherenkov) em La Palma, nas Ilhas Canárias, observaram esta parte do céu e encontraram o blazar conhecido, TXS 0506+056, num estado de intensa emissão de alta energia ao mesmo tempo que o neutrino foi detectado no Polo Sul.

Os blazares são os núcleos centrais de galáxias gigantes que abrigam um buraco negro supermassivo no núcleo, onde a matéria espiralada forma um disco giratório quente que gera enormes quantidades de energia, junto com um par de jatos relativísticos.

O TXS 0506+056 é uma galáxia com núcleo ativo. Isso significa que ela abriga em seu centro um buraco negro com massa muito elevada que, ao consumir a matéria ao redor, expulsa jatos de radiação luminosa que brilha mais do que todas as estrelas da galáxia.

Após os alertas do IceCube e do Fermi, 17 observatórios ao redor do mundo acompanharam as variações de brilho do TXS 0506+056. O objeto emite radiação em todas as faixas de energia do espectro eletromagnético, das mais baixas (ondas de rádio) até as mais altas (raios X e gama).

As observações sugerem que o brilho detectado seja a radiação gerada por um jato de matéria ejetada por campos magnéticos ao redor de um buraco negro de massa muito elevada (equivalente à de bilhões de sóis) no centro de uma galáxia a 4 bilhões de anos-luz de distância da Terra.

No caso do TXS 0506+056, seu jato está apontado diretamente para a Terra. Este aspecto permite que tanto a radiação eletromagnética, quanto os neutrinos produzidos ao longo do jato cheguem ao planeta depois de viajar durante 4 bilhões de anos em linha reta.

Duas coincidências permitiram aos pesquisadores conectar a origem do neutrino ao blazar: a detecção da partícula ocorreu simultaneamente ao aumento de brilho do TXS 0506+056 e tanto o neutrino quanto a radiação vieram da mesma região do espaço.

Seria essa coincidência mero fruto do acaso? Para diminuir o risco de estarem se iludindo, os pesquisadores analisaram dados coletados durante 10 anos pelo IceCube em busca de mais detecções de neutrinos de alta energia vindos da região do blazar TXS 0506+056. De setembro de 2014 a março de 2015, uma dúzia de neutrinos, possivelmente oriundos daquele mesmo ponto no céu, atravessaram os detectores ocultos no gelo da Antártida, mas deixaram um traço mais difuso.

Em 2017, a combinação de duas técnicas permitiu identificar a região do espaço em que ocorreu o choque explosivo de duas estrelas de nêutrons e estudar em detalhes as consequências desse tipo de colisão, fonte de elementos químicos pesados do Universo, como o ouro.

Esta observação fortalece muito a detecção inicial de um único neutrino de alta energia e aumenta o volume de dados que indicam que o blazar é a primeira fonte conhecida de neutrinos de alta energia e raios cósmicos de alta energia.

Fonte: Science