segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A radiação terahertz

Apesar de ainda pouco explorada, a radiação terahertz já fornece mostra de sua potencialidade em análises de materiais e obtenções de imagens.

quadro Marinha

© Virgilio Guidi (quadro Marinha)

Nada substitui o olho de um especialista para avaliar as particularidades de um quadro. Mas o emprego em importantes museus e instituições culturais do país de uma série de análises físicas e químicas tornou-se uma ferramenta adicional para entender o estilo e o processo criativo de certos pintores, dar parâmetros ao trabalho de conservação e restauração e trazer à tona facetas ocultas de algumas pinturas. Nesse sentido, a história do quadro Marinha, um óleo sobre madeira produzido provavelmente no início da década de 1940 pelo italiano Virgilio Guidi (1891-1984), é bastante ilustrativa. No catálogo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), onde se encontra guardada, essa tela abriga, oficialmente, apenas uma pintura: uma vista do Grande Canal de Veneza, com destaque para a Igreja de San Giorgio Maggiore. No entanto, basta virar o quadro para ver, a olho nu, em seu verso o retrato de uma mulher. Imagens no infravermelho desse lado B da tela revelaram uma terceira pintura escondida sob as tintas que deram forma à figura feminina: outra cena marítima da cidade italiana.

Os raios X, raios gama, raios ultravioleta, raios infravermelhos e micro-ondas representam diferentes formas de radiação eletromagnética. A radiação infravermelha se manifesta sob a forma de calor.

No espectro eletromagnético, entre a faixa das micro-ondas e do infravermelho existe uma zona pouco explorada científica e tecnologicamente, a radiação terahertz gerada pelos raios T.

O nome vem da faixa de frequências dessa radiação, entre 0,3 e 3 THz (terahertz ou trilhões de hertz). Em termos de comprimento de onda, os raios T vão de 1.000 a 100 micrômetros.

Depois de muitas e infrutíferas tentativas de aproveitamento dos raios T, parece que agora há indícios de que teremos finalmente a exploração da última fronteira de pesquisa em eletrônica de alta frequência.

Há quase 90 anos, mais precisamente em 1923, E. F. Nichols e J. D. Tear publicaram um artigo com o sugestivo título “Unindo os espectros do infravermelho e das ondas elétricas”.

Desde então, físicos e engenheiros têm preconizado uma “nova era” para essa fronteira entre o infravermelho e a micro-onda, para logo depois se depararem com resultados pífios.

Os desenvolvimentos científicos e tecnológicos nos dois lados da fronteira têm sido notáveis, tais como os artefatos modernos: forno de micro-ondas, telefones celulares, telefones sem fio e GPS.

No lado do infravermelho, não é menos notável o desenvolvimento tecnológico, muitas vezes impulsionado por interesses militares. Entre as inúmeras aplicações civis, podemos destacar aquelas relacionadas a pesquisas em astronomia, em química e na análise de objetos de arte, sobretudo pinturas.

Enquanto a micro-onda, com frequência na faixa do gigahertz, é capaz tão somente de produzir rotações nas moléculas, a parte superior do infravermelho, com frequência maior que 10 terahertz, é capaz de produzir vibrações, resultantes de interações intermoleculares.

Já a radiação terahertz faz as duas coisas simultaneamente. A análise com raios T permite, ao mesmo tempo, a análise de materiais quanto à sua estrutura molecular, assim como a análise com micro-onda, e quanto à sua composição química, do mesmo modo que a análise com infravermelho.

Esse comportamento extremamente interessante é conhecido desde os anos 1920, mas foi necessário esperar por uma ideia bastante criativa para que feixes de raios T com alta luminosidade e grande faixa de frequências pudessem ser produzidos.

Uma ideia inovadora, originada nos laboratórios Bell, no final dos anos 1980, utilizou um laser de femtosegundos (femtosegundo é um quadrilionésimo de segundo). Quando um pulso emitido pelo laser atinge uma antena fotocondutiva, material que emite pulsos elétricos quando iluminada, também inventado pelos pesquisadores da Bell, o resultado é a emissão de pulsos com frequências entre 300 gigahertz e 10 terahertz.

Tão interessante quanto isso é o fato de que pequenas modificações técnicas na estrutura do circuito transformam uma antena emissora em receptora, dois elementos importantes para o funcionamento de um equipamento de raios T.

Seu alto poder de penetração em materiais desidratados, não-metálicos, plásticos, papéis e cartolinas e sua impenetrabilidade em materiais metálicos e líquidos polares como a água fazem da radiação T uma excelente ferramenta para obtenção de imagens, uma das aplicações mais extasiantes da atualidade.

Quando o feixe do laser atinge a antena emissora constituída de material fotocondutor, produz pulsos de raios T, os quais são modificados, em sua forma e frequência, em decorrência da interação com o material da amostra. Um sistema eletrônico convencional transforma os sinais elétricos produzidos pela antena em imagens.

Um cálculo simples mostra a eficiência desse sistema de aquisição de imagem com raios T. Antes do uso do laser de femtosegundo e das antenas fotocondutivas, seriam necessários 15 dias para a obtenção de uma imagem de 100 pixel x 100 pixel com raios T. Com o sistema desenvolvido pelo pessoal da Bell é possível analisar 100 pixels por segundo, de modo que a imagem de 100x100 é obtida em pouco mais de 1 minuto.

Muitos dos resultados de aplicações analíticas da radiação T são similares àqueles obtidos com o infravermelho. Já nas aplicações com imagens, além das duas formas de radiações eletromagnéticas, os raios X aliam-se na concorrência.

Os pesquisadores da Universidade de Tecnologia de Delft, na Holanda, mostraram como os raios T podem ser utilizados, de modo não destrutivo, para determinar espessuras de camadas de tinta abaixo de uma pintura, algo impossível com o uso de raios X ou infravermelho.

Ao contrário dos raios X, os raios T não ionizam o material analisado e, ao contrário do infravermelho, não o aquece por causa da baixíssima intensidade necessária para a realização das análises.

Apesar de todas as vantagens apontadas até aqui, ainda há uma séria limitação a ser superada nos atuais equipamentos: a baixa resolução espacial. A resolução espacial dos equipamentos atuais está na faixa do milímetro, ou seja, objetos na escala micrométrica não são bem identificados.

Aumentar a resolução espacial dos equipamentos de raios T é, portanto, um efervescente desafio de pesquisa, que poderá fazer com que a radiação terahertz seja digna dos sonhos dos pesquisadores da área.

Recentemente, Godfrey Gumbs e seus colegas da Universidade Cidade de Nova Iorque idealizaram um dispositivo que permite converter uma corrente contínua, como a armazenada em baterias, em uma fonte ajustável de radiação terahertz.

O dispositivo é baseado nos plásmons de superfície, ondas de elétrons que se formam na superfície dos metais. Foi idealizado um semicondutor híbrido: uma camada mais grossa de um material eletricamente condutor envolvida por duas camadas muito finas, que podem ser de grafeno, siliceno, ou mesmo de um gás.

Quando a corrente contínua passa através desse sanduíche, ela cria uma ressonância plasmônica com um comprimento de onda muito específico, que induz a emissão da radiação terahertz, que pode então ser "coletada" por uma antena em forma de grade.

Ajustando os vários parâmetros, como a densidade do semicondutor híbrido ou da corrente contínua aplicada, é possível ajustar o comprimento de onda, ou seja, a frequência da radiação terahertz produzida.

"Nossa abordagem baseada em semicondutores híbridos pode ser generalizada para incluir outros materiais bidimensionais emergentes, tais como o nitreto de boro hexagonal, a molibdenita e o disseleneto de tungstênio," disse o professor Andrii Iurov, coordenador da equipe.

Um artigo intitulado “Tunable surface plasmon instability leading to emission of radiation”, que descreve a converção de uma corrente contínua em uma fonte ajustável de radiação terahertz, foi publicado no Journal of Applied Physics.

Fonte: Ciência Hoje e Pesquisa FAPESP

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A natureza dos neutrinos de alta energia

A Colaboração IceCube anunciou uma nova observação de neutrinos de alta energia originários de fora do nosso Sistema Solar.

eventos de neutrino mais energéticos

© IceCube (eventos de neutrino mais energéticos e o IceCube Lab)

Este estudo, que procurou neutrinos vindos do Hemisfério Norte, confirma a sua origem cósmica bem como a presença de neutrinos extragaláticos e a intensidade da taxa de neutrinos. A primeira evidência de neutrinos astrofísicos foi anunciada pela colaboração em novembro de 2013.

"A procura por neutrinos do múon que chegam ao detector, passando pelo interior da Terra, é o modo como o IceCube faz astronomia de neutrinos e, com este estudo, prova-o," afirma Francis Halzen, pesquisador principal do IceCube e professor de física da Universidade de Wisconsin-Madison. "Não é como o CMS (Compact Muon Solenoid) ou o ATLAS (A Toroidal LHC ApparatuS), ambos do LHC (Large Hadron Collider), mas é tão perto de uma confirmação independente quanto possível para um único instrumento."

Os neutrinos são partículas subatômicas que viajam por todo o Universo quase sem serem influenciados pela matéria, apontando diretamente para as fontes de energia onde foram criados. E para os neutrinos mais energéticos, essas fontes deverão ser os ambientes mais extremos do Universo: poderosos geradores cósmicos, como buracos negros ou a explosão de estrelas gigantescas, objetos capazes de acelerar os raios cósmicos para energias mais de um milhão de vezes superiores àquelas alcançadas pelos aceleradores feitos pelo Homem, como o LHC no CERN.

"Os neutrinos cósmicos são a chave para partes ainda inexploradas do nosso Universo e poderão finalmente revelar as origens dos raios cósmicos mais energéticos," afirma Olga Botner, porta-voz da colaboração e da Universidade de Uppsala. "A descoberta de neutrinos astrofísicos aponta para o início de uma nova era na astronomia."

Os neutrinos nunca são observados diretamente, mas o IceCube é capaz de ver os subprodutos de uma interação entre um neutrino e o gelo da Antártida. Este detector com um quilômetro cúbico regista cem mil neutrinos por ano, a maioria produzidos pela interação dos raios cósmicos com a atmosfera da Terra. Bilhões de múons atmosféricos criados nas mesmas interações também deixam vestígios no IceCube. De todos estes, os pesquisadores procuram apenas algumas dúzias de neutrinos astrofísicos, que vão ampliar a nossa compreensão atual do Universo.

A pesquisa apresentada há poucos dias pela Colaboração IceCube usa uma velha estratégia para um telescópio de neutrinos: observa o Universo através da Terra, usando o nosso planeta para filtrar o grande fundo de múons atmosféricos. Entre maio de 2010 e maio de 2012, foram encontrados nos dados mais de 35.000 neutrinos. À energia mais alta, acima dos 100 TeV (teraelétrons-volt ou trilhões de elétrons-volt), a taxa medida não pode ser explicada por neutrinos produzidos na atmosfera da Terra, indicando a natureza astrofísica dos neutrinos de alta energia. A análise apresentada nesta pesquisa sugere que mais de metade dos 21 neutrinos acima dos 100 TeV têm origem cósmica.

mapa celeste dos 21 eventos mais energéticos

© IceCube (mapa celeste dos 21 eventos mais energéticos)

Esta observação independente, com uma significância de 3,7 sigma e em boa concordância com os resultados anteriores da Colaboração Icecube, também confirma a elevada taxa de neutrinos astrofísicos. Apesar dos cientistas ainda os contarem "ao punhado", os resultados do IceCube estão perto dos valores máximos com base nas fontes potenciais de raios cósmicos. A intensidade deste fluxo mostra que as fontes de raios cósmicos são geradores eficientes de neutrinos. E, portanto, estas pequenas partículas são ainda mais tidas em conta como as ferramentas perfeitas para explorar o Universo extremo.

Os neutrinos de alta energia observados pertencem a uma nova amostra de neutrinos, tendo apenas um evento em comum com os primeiros resultados anunciados em 2013, que procurou neutrinos de alta energia que tinham interagido com o gelo dentro do IceCube durante o mesmo período de obtenção de dados. A pesquisa atual focou-se apenas nos neutrinos do múon. Estes neutrinos produzem um múon quando interagem com o gelo e têm uma assinatura característica no IceCube, que chamam de "track", o que os torna fácil de identificar. É esperada a mesma forma para um múon atmosférico, mas ao observar apenas o Hemisfério Norte, os cientistas sabem que um múon detectado só pode ter sido produzido pela interação de um neutrino.

Estas "tracks" induzidas por neutrinos têm uma boa resolução de apontamento, que podem usar para localizar as suas fontes com uma precisão inferior a 1 grau. No entanto, os estudos do IceCube ainda não encontraram um número significativo de neutrinos provenientes de uma única fonte. O fluxo de neutrinos medidos pelo IceCube no Hemisfério Norte tem a mesma intensidade que o fluxo astrofísico medido no Hemisfério Sul. Isto suporta a ideia de uma grande população de fontes extragaláticas, caso contrário as fontes na Via Láctea dominariam o fluxo em torno do plano galáctico.

Além disso, esta nova amostra de neutrinos de alta energia, quando combinada com as medições anteriores do IceCube, permitem as medições mais precisas, até à data, do espectro de energia e da composição do fluxo de neutrinos extraterrestres.

O IceCube, gerido pela Colaboração Icecube, é um detector de partículas localizado perto da Estação Amundsen-Scott no Pólo Sul. Está enterrado abaixo da superfície e estende-se até uma profundidade de aproximadamente 2.500 metros. Uma rede à superfície, o IceTop, e um subdetector interno mais denso, DeepCore, melhoram significativamente as capacidades do observatório, tornando-o numa instalação multiusos.

Os resultados são a primeira confirmação independente desta descoberta e foram publicados agora na revista Physical Review Letters. E também um segundo artigo foi publicado na revista The Astrophysical Journal.

Fonte: University of Wisconsin-Madison